Em 1973, na Suécia, um homem armado entrou em um banco e fez quatro funcionários como reféns. Durante os seis dias em que permaneceram em poder do sequestrador, as vítimas desenvolveram sinais claros de uma improvável empatia para com o algoz. Pequenas atitudes como soltar as amarras, permitir ir ao banheiro e beber água, passaram a ser interpretadas pelos confinados como demonstrações de afeto. Tal foi o efeito devastador na mente dessas pessoas que, quando houve a ação de libertação por parte da polícia, elas se despediram com abraços em seu sequestrador. O criminologista Nils Berejot cunhou o termo que ficaria famoso por descrever esse tipo de situação: Síndrome de Estocolmo.
Batman vs. Superman: A Origem da Justiça, dirigido por Zack Snyder, é o produto de um estúdio que fez os fãs de histórias em quadrinhos reféns durante mais tempo do que seria aconselhável e, graças a isso, colhe resultados positivos e negativos. Os negativos, obviamente, são os reviews desfavoráveis que o filme vem recebendo por boa parte da crítica especializada, o que causa desconfiança no espectador que não conhece tanto assim o universo de super-heróis. O ponto positivo é o amor incondicional de alguns fãs, que defendem o longa com unhas e dentes, mesmo que ele não os tenha tratado com o carinho que mereciam.
Pensado como uma continuação direta de O Homem de Aço, de 2013, esse longa tenta algo ambicioso: estruturar os pilares para um universo cinematográfico da DC, enquanto adapta um embate emblemático dos quadrinhos. Conhecidos como “Os Melhores do Mundo”, Batman e Superman já se enfrentaram diversas vezes, muitas delas devido ao estilo diferente de combater o crime, que caracteriza os dois personagens. Mas aqui, a opção foi por tornar a disputa real graças a um vilão, Lex Luthor (Jesse Eisenberg), que manipula ambos para concluir um objetivo comum. Infelizmente as motivações que tornariam esse vilão grandioso e odiado são subentendidas, não ficando totalmente claras para quem o conheceu apenas nesse filme. E talvez esse tenha sido o pior erro de Snyder. Por vezes considerar que o espectador já conhece alguns personagens, e por isso tornaria-se desnecessário situá-lo nesse universo, e em outras mudar características conhecidas dos fãs, removendo peças básicas de suas personalidades. O resultado acaba ficando perdido entre uma reinvenção autoral e um filme feito para fãs.
É Incrível e assustador assistir ao ápice da batalha entre Superman (Henry Cavill) e Zod da perspectiva de um mortal. Toda essa sequência serve muito bem ao propósito de mostrar quem é Bruce Wayne (Ben Affleck) e o que ele está disposto a sacrificar pelo bem dos outros. É emblemática e lindamente construída a cena onde a câmera acompanha o personagem correndo de encontro à nuvem de escombros, enquanto os demais fogem. Por isso mesmo é um tanto decepcionante perceber o quão pouco o roteiro de David Goyer e Chris Terrio compreende a essência dos personagens que busca adaptar. O Homem-Morcego desse filme é um maníaco homicida que cansou de lutar com bandidos comuns e tenta salvar o mundo de uma ameaça maior, enquanto despeja tiros de .50 saídos de seu batmóvel. Meu lado nerd grita que ‘’Batman nunca usaria uma metralhadora para explodir seres humanos, ele valoriza a vida, etc, etc, etc…”. Mas essa é uma nova visão sobre o personagem e não necessariamente deve se manter fiel a conceitos pré-estabelecidos nos quadrinhos. Não seria justo, portanto, analisar o roteiro com base no que eu acho que ele deveria ser. Mas você ficou curioso com o que EU queria ver?
Sonhei em ir ao cinema assistir a um filme onde o Batman não matasse. Onde Superman tivesse superado sua adolescência tardia vista em O Homem de Aço para assumir sem pudores sua condição no mundo. Onde Jesse Eisenberg não tivesse se inspirado em alguma versão do Charada para interpretar seu Lex Luthor. Mas isso tudo é apenas o que eu gostaria de ver no cinema. A execução ser diferente de minha expectativa não é algo necessariamente ruim, muito menos errado. Nem por isso vou me apegar às qualidades do longa para esconder que esse possui erros que não são apenas questão de interpretação da obra. E não são poucos.
O principal furo no roteiro de Batman vs. Superman é construção de seu vilão, já que ela praticamente inexiste. O texto tenta nos dar uma razão para a loucura de Lex apenas no ato final, onde ele diz ter sido vítima de violência por parte do pai. Pode parecer uma justificativa boba, mas não existem justificativas bobas, existem saídas covardes de roteiro. Jogar essa informação em meio a um diálogo esquizofrênico é a solução fácil. Perdeu-se ali a oportunidade de tornar o personagem tridimensional, de entender seus maneirismos, seus cacoetes, sua covardia. Talvez Jesse Einsenberg ao construir um personagem tão caricato tenha o salvado de ser apenas o cara ruivo que quer, por algum motivo, matar o Superman. Explorar o medo e o excesso de controle de Luthor o traria para perto do espectador ao mesmo tempo que justificaria seu enorme ego, causando empatia e dúvida, mas o roteiro opta pelo caminho mais fácil: resumir um personagem com 70 anos de história a uma frase solta no meio de um discurso megalomaníaco.
Outro elo, inexplicavelmente, fraco da trama é o próprio Superman / Clark Kent. Nos corredores do Planeta Diário se comenta que sua demissão é iminente, já que é odiado pelo editor do jornal e não faz nada para mudar essa situação. Sua veia jornalística teve preguiça até mesmo de procurar mais informações sobre o vigilante de Gotham além daquelas vindas de… outros jornalistas! Clark como jornalista e Bruce como detetive são desastres, já que um dia de trabalho bem feito (por parte de qualquer um dos dois) teria evitado o embate que dá nome ao filme. Mais uma adaptação a qual teremos que nos acostumar, pois Batman não é o maior detetive do mundo e Clark não é um repórter competente e sagaz. E novamente, isso não torna o filme ruim, apenas descaracteriza todos os arquétipos que já temos construídos sobre os personagens.
Mas se o filme possui muitos defeitos nítidos, também acumula méritos. O Batman de Ben Affleck é simplesmente incrível na tela. A técnica brutal de luta e as sombras servindo como esconderijo lembram as cenas vistas nos videogames recentes do personagem e são maravilhosas de se acompanhar em live action. Gal Gadot destruiu as críticas negativas que recebeu por sua escalação, se mostrando onipresente como Mulher Maravilha sempre que a câmera aponta para ela. Aliás, se existe algo que Snyder sabe filmar são cenas de ação. Sua mistura videoclíptica de trilha sonora e enquadramentos grandiosos transforma o ato final do longa em uma disputa surreal de seres ultrapoderosos. Ninguém, repito, ninguém filma cenas que parecem saídas de um gibi como esse cara.
E quando falamos mais a fundo sobre Snyder, entendemos um pouco melhor a dissonância de opiniões que tem tomado a internet de assalto. Apesar de ser um diretor competente e de dar forma a uma responsabilidade que seria grande demais para a maioria dos diretores, Snyder mentiu pra todos nós quando se vendeu como um super nerd. O diretor, tanto em Watchmen, quanto em O Homem de Aço e também em A Origem da Justiça, não está interessado em mostrar NOSSOS personagens no cinema. Aquelas personalidades a que estamos acostumados e que, muitos de nós, crescemos lendo em nossas histórias em quadrinhos, não são o interesse do diretor. Seja por uma megalomania digna de seu Lex Luthor, seja por uma genuína intenção de levar os personagens a um próximo nível, Snyder transforma os personagens de acordo com a história que quer contar, e não é de hoje que suas decisões causam polêmica e, quase nunca, são totalmente justificadas. Quem já leu Watchmen e assistiu a adaptação para o cinema sabe do que estou falando. A solução final idealizada pelo autor Alan Moore parecia fantástica demais, a resolução proposta por Snyder é mais palatável, mas destrói boa parte do simbolismo imposto desde o primeiro requadro da história em quadrinhos.
Independente de você ter amado ou odiado Superman vs. Batman (aparentemente essas são as duas opções possíveis, segundo a internet), tem que concordar que gastar MEIO BILHÃO DE DÓLARES para ter uma recepção tão dividida não é exatamente o sonho dos executivos da Warner. Não existe conspiração contra o filme, não existe hate proposital. O que todos queriam era um filme impecável, capaz de redefinir todos os conceitos que temos até hoje e subir o nível da nossa régua de avaliação. É isso que se espera quando se reúne a trindade da DC Comics em um único frame de um longa metragem tão caro, mas não foi o que aconteceu. Temos um filme bacana, com alguns momentos de arrepiar (“Eu sou um amigo do seu filho” me fez sorrir feito bobo) e que servirá para estabelecer um universo mais amplo para o futuro próximo. Sim, ele vai dar lucro e terá continuações, mas Batman vs. Superman não é uma declaração de amor da Warner para seus fãs. No máximo, ela afrouxou nossas algemas.