Imagine um pequeno cientista de pele laranja, cabeça grande e gigantescos olhos escuros. Vamos chamar ele de Zeb (pode ser?). Zeb vive alguns milhares de anos no futuro, em um desses planetas distantes milhares de anos luz da Terra, ao qual levaríamos alguns milhares de anos luz para chegar, caso fosse possível viajar na velocidade da luz e viver alguns milhares de anos.
O trabalho de Zeb é captar dados vindos do espaço, tentando encontrar vida inteligente fora de seu planeta. Por um desses acasos do destino (ou um defeito do satélite da HBO na hora de atender a uma solicitação de streaming), Zeb acabou recebendo o season finale da sexta temporada de Game of Thrones em seu terminal. Como o povo de Zeb não é muito afeito a consumir dramaturgia, nosso pequeno cientista laranja sequer questionou o fato de que o arquivo de vídeo, que atravessou quasares, desviou de supernovas e chegou até sua antena praticamente intacto, poderia ser obra de ficção. Passou então a analisar nossa história com base naquele relato histórico, tal qual fizemos com representações artísticas de civilizações anteriores a nossa.
Superado o susto com nossa péssima aparência (sem desconfiar de que o povo de Game of Thrones é, em geral, bem mais bonito que a média de nossa população), Zeb percebeu que os habitantes da Terra convivem com dragões, tem de lidar com mudanças climáticas drásticas, conspirações políticas nefastas, guerras entre povos vizinhos, assassinatos de crianças, crueldade, escravidão, sadismo, preconceito e todo tipo de doença social já superada por seu povo há alguns milênios. Espantosamente, Zed se enganou apenas em relação aos dragões.
Você já deve ter ouvido a palavra zeitgeist, talvez graças àquele filme que ficou famoso ao tratar de várias teorias da conspiração. Mas o termo, que vem do alemão, precede (em muito) o filme e significa “o espírito de uma época”. É comum vermos obras culturais tentando entender o zeitgeist. Mad Men é um bom exemplo de como, através de um microcosmo, é possível analisar o comportamento, a estrutura familiar, a cultura, a política, a religião, enfim… entender como um determinado povo se comporta em determinada época, captando os valores daquela sociedade e dramatizando-os.
A princípio pode soar estranho tratar Game of Thrones como nosso zeitgeist, afinal não temos dragões, nem zumbis de gelo, nem lobos gigantes, tampouco vivemos em uma sociedade pré-renascentista. Mas não por acaso, em uma época onde a crença no ser humano, na bondade e na virtude é tão questionada, uma das séries de maior sucesso mundial retrata justamente a dureza de um período medieval. Ainda que fantástico, o ambiente de Westeros possui a dureza, a falta de esperança e a descrença na vitória da virtude contra a maldade, característicos de uma sociedade da idade média. E também da nossa.
Apesar de o primeiro livro da série Crônicas de Gelo e Fogo ter sido publicado há 20 anos, as temáticas abordadas na saga e amplificadas por todo o hype da série de TV convergem e conversam com um momento importante de nossa história, tornando uma atração de época em algo extremamente contemporâneo. Basta analisar as várias facetas da trama idealizada por George R. R. Martin para perceber suas contrapartes nos noticiários de 2016. A desconfiança dos europeus para com imigrantes que fogem de uma situação onde perderam sua casa e boa parte de suas famílias para o terrorismo e extremismo encontra eco em todo o arco onde os “selvagens” tentam achar abrigo e salvação em Westeros. A mistura bizarra entre poder político e conceitos religiosos conservadores vistos com o empoderamento do clero em Porto Real fala muito sobre o movimento de endurecimento de lideranças políticas em relação aos direitos constitucionais de minorias. A ascensão das mulheres à posições de liderança, enquanto ainda sofrem com sexismo e violência, também são algo com o que estamos lidando (não muito bem) em nossa sociedade.
Apesar de todos esses paralelos, o que mais impressiona é realmente o espírito da sociedade atual transcrito na ficção. É normal termos exemplos de obras que captam o sentimento atual e se adequam, seja por interesse comercial ou artístico, às mudanças intempestivas de nossa inteligência coletiva. Tolkien registrou o espírito dos aliados contra o eixo na Segunda Guerra Mundial, por mais que o autor diga que a história não é uma alegoria. Os super-heróis no final dos anos 30 representavam o sentimento de esperança de uma sociedade saída da Grande Depressão. Game of Thrones, seja como literatura, seja como obra transmídia, capta com perfeição o sentimento negativo e cínico de nossa sociedade.
Se você duvída que Game of Thrones seja o zeitgeist de nossa geração, entre em qualquer área de comentários de uma notícia sobre direitos civis de minorias, política ou violência contra a mulher. Você, assim como Zeb, vai concordar que estamos na idade média.