Essa última sexta-feira, dia 10 de abril de 2015, foi um belo dia para quem sempre viveu imerso no mundo dos quadrinhos de super-heróis. Chegar em casa, ligar a TV e ter uma temporada inteira de uma série com um dos personagens mais conhecidos das HQ’s é algo que vivi para ver. A cultura marginalizada durante tanto tempo, segregada a alguns poucos núcleos adolescentes nas décadas passadas, agora é mainstream…
Mas não pense que eu digo isso porque a série do Demolidor, produzida pela Netflix em conjunto com a Marvel, é algo pioneiro. Super-heróis foram levados para a TV ainda nos anos 50, com a série do Superman estrelada por George Reeves, e antes disso já haviam seriados do personagem para o cinema e rádio. Quem não lembra dos telefilmes e da série do Hulk nos anos 70 e 80? Do sofrível seriado do Homem-Aranha? Lois & Clark foi febre durante suas primeiras temporadas nos anos 90 e Smallville foi idolatrado em seu início já nos anos 2000. E mesmo hoje séries como Arrow, Gotham e Agents of the SHIELD estão ativas e com boa audiência. Então o que separa Demolidor desse outro balaio de séries super-heróicas?
A resposta é: valor de produção.
E não… isso não é sinônimo de dinheiro nem de efeitos especiais.
Todas as séries citadas acima foram tentativas de levar os quadrinhos para a TV aberta. Lá nos Estados Unidos isso é o equivalente ao novelão brasileiro, passando na Globo as 21h. São séries que normalmente tem 24 episódios por temporada (mas isso não é uma regra), tratam de uma trama maior mas tem esquemas de roteiro repetitivos, tratando do caso/monstro/bandido da semana. Isso não acontece por acaso nem por incompetência dos produtores. É um recurso, bem inteligente por sinal, para não frustar o público médio, que assiste a um ou outro episódio esporadicamente e ainda assim pode ter diversão por 45 minutos, sem grandes compromentimentos com uma supertrama que se estende por meses ou anos. Arrow, Gotham e Flash, as séries que são sucesso com os personagens da DC Comics, são exemplo disso. Você pode assistir o 13º episódio da terceira temporada, ver o Arqueiro Verde chutar algumas bundas e simplesmente ignorar o aspecto macro da jornada do herói.
Já a maioria das séries realmente cultuadas nos últimos anos, ao contrário do que muita gente pensa, não passam na TV aberta lá fora. The Walking Dead, Mad Men, True Detective, Os Sopranos, Game of Thrones, Breaking Bad são todas produções de canais por assinatura. Não por acaso seu nível de produção é completamente diferente. O ritmo dos episódios é muito mais cinematográfico e focado no “big picture” da história. Seja no desenvolvimento dos personagens ou nas jornadas que esses cumprem ao longo das temporadas, normalmente há muito mais planejamento por parte dos produtores e capricho por parte dos realizadores. As temporadas são menores, com eventos mais condensados e cada episódio tem muito mais relevância para a história. Não é incomum ter que reassistir a um episódio de House of Cards, por exemplo, para recapitular algum evento importante que não vai ser mastigado e regurgitado pra que você entenda o desenrolar dos acontecimentos. Mas o mais importante de tudo é que as séries dos canais por assinatura não precisam agradar a família inteira. Quando você lida com assinantes, pode trabalhar nichos, explorar violência, nudez e diálogos mais rebuscados e inteligentes, basicamente porque as pessoas estão pagando para assistir aquilo e não cozinhando macarrão enquanto ficam com um olho na tela.
Valor de produção é isso. É ter roteiristas, diretores, atores e produtores com mais experiência, mais talento e, consequentemente, mais bem remunerados, trabalhando em um projeto focado em um público mais qualificado. E assim como HBO, AMC, Showtime e outras, a Netflix vem se fortalecendo como uma das grandes produtoras de conteúdo de qualidade dentro do mundo das séries. Mas é claro que pegar o orçamento de uma série de 24 episódios e utilizá-lo para produzir apenas 10 ou 12 não atrapalha na hora de realizar os efeitos especiais ou caprichar no design de produção.
E é aí que Demolidor se diferencia de todas as outras tentativas de se levar um super-herói para uma produção de TV. É a primeira vez que uma grande produtora de conteúdo se responsabiliza e coloca sua chancela de qualidade em um material como esse. Se as séries “novelão” são o equivalente aos quadrinhos mensais e os filmes são as graphic novels, a série do diabão da Cozinha do Inferno chega para ocupar um patamar intermediário, ainda inexplorado. Seria como ter um belo encadernado de um arco, escrito por um grande nome dos quadrinhos.
A série mistura drama pessoal e um ótimo desenvolvimento
de personagem com o que há de melhor do cinema porrada oriental. Charlie Cox interpreta Matt Murdock, advogado recém formado que sofreu um acidente na infância que o deixou sem visão, porém acentuou o uso de todos os outros sentidos. Junto a seu sócio Foggy Nelson, vivido por Elden Henson, ele enfrenta seu primeiro caso para tentar inocentar Karen Page, interpretada por Deborah Ann Woll, de um assassinato que não cometeu. Mas como essa
é a série de um justiceiro mascarado, paralelo a seu trabalho diurno Matt enfrenta durante a noite uma gangue de traficantes de pessoas.
Apesar de essa ser uma coluna sobre episódios pilotos de séries, tenho que confessar que assisti aos dois primeiros episódios da série antes de escrever esse texto. E foi no segundo em que a isca jogada finalmente me fisgou. Apesar de toda a bela construção do cenário em que a história se passa, é no segundo episódio em que vemos a real essência do personagem. Os flashbacks mostrando sua difícil infância ao lado do pai, o boxeador Jack “O Batalhador” Murdock, e como o caráter do jovem Matt foi moldado desde cedo, nos fazem entender quem é aquela pessoa e porque ela faz o que faz. No melhor estilo “discurso de Rocky Balboa”, Matt aprende da maneira mais difícil que não importa quantas vezes você cai, mas sim o quanto é capaz de levantar e continuar lutando.
Se a atuação de Charlie Cox já não convencesse enquanto ele usa terno e gravata, são nas cenas em que ele veste seu protótipo de traje de super-herói que percebemos todo o trabalho de construção do personagem. Desde pequenas ações que o Demolidor efetua sem virar a cabeça (simplesmente por não ser dessa forma que ele “vê” o que está fazendo), tudo é pensado para que o espectador não se esqueça por um minuto que aquele personagem não enxerga. Mérito também da equipe de coreografia de lutas e para o time de dublês, que consegue mostrar com perfeição um sujeito que continua brigando apesar de estar fisicamente destruído. Destaque para o final do segundo episódio, onde temos uma sequência de tirar o fôlego com clara referência à passagem mais famosa do clássico coreano Oldboy.
E aqui vale um adendo. Me desculpe quem consumiu a série de forma apressada para poder escrever “a primeira resenha da temporada completa” (afinal a internet hoje é basicamente o palco de quem viu primeiro), ou para o sujeito que engoliu os 13 episódios para contar vantagem para os amigos e vomitar suas opiniões com sabor de hambúrguer de microondas. Vocês não sabem de nada. Assistirei a temporada em doses homeopáticas, aproveitando cada momento e percebendo cada detalhe. Como já fiz nos dois primeiros episódios, voltarei para rever três vezes cada bela coreografia de luta. E é assim que aconselho que você desfrute dessa série. Chute o imediatismo de ter a temporada inteira disponível e deguste Demolidor. Nem o mundo, nem seus amigos, nem ninguém vai te achar uma pessoa incrível por ter acordado as 4h da manhã para assistir todos os episódios antes do resto da humanidade. Pode acreditar.
A partir destes dois primeiros episódios é fácil ver que a série está no caminho certo e agradará em cheio aos fãs que buscam uma adaptação levada a sério, como era de se esperar da Netflix pelos seus últimos trabalhos. Demolidor é a fase de ouro das séries de TV chegando nas adaptações de quadrinhos. Já não era sem tempo.